A Associação Portuguesa de Empresas de Distribuição (APED) já tinha alertado para a hipótese de as prateleiras das grandes superfícies estarem vazias em Dezembro, altura de corrida às prendas de Natal. Há umas semanas, o diretor geral, Gonçalo Lobo Xavier, falava de um “cocktail explosivo” de problemas que levaria à rutura de stocks.
Em declarações ao jornal ECO, o dirigente da Associação referiu-se ao aumento do preço das matérias-primas, à falta de microchips eletrónicos (semicondutores) e aos atrasos no transporte marítimo. Todos estes estariam a “provocar muitos constrangimentos para a importação de produtos de fora da Europa e que têm um peso significativo no retalho especializado.” Na altura, referiu ainda que possíveis ruturas não deveriam ser imputadas aos retalhistas mas sim ao “facto de o canal de distribuição não estar a funcionar.”
Correspondendo às previsões, a situação agravou-se. Agora, a Black Friday e o Natal estão à porta, e as perspetivas não são animadoras. A escassez de produtos e o aumento dos preços comprometem toda a indústria. Mesmo para as empresas que produzem internamente, a importação de alguns componentes é essencial. Faltando elementos à cadeia, a oferta diminui e o cliente final paga mais. O efeito da globalização da economia é uma bola de neve que não para de crescer e ninguém consegue travá-lo.
O que se passa com o transporte marítimo?
Em Outubro, o cenário do setor portuário foi descrito pelos operadores ao ECO como “completamente louco”, com preços de transporte dez vezes mais elevados do que no período pré-pandemia, sobretudo nas rotas originárias da Ásia. Ao mesmo jornal, Mário de Sousa, CEO da Portocargo, falou em “muita mercadoria acumulada à espera de espaço em navios” em risco de chegar à Europa só depois do Natal.
Segundo o responsável, as fábricas estão atrasadas na produção e na entrega. Desse modo, não há uma evolução favorável do desequilíbro na distribuição de contentores pelo mundo, que começou com o surgimento da COVID-19, na China.
A IKEA é uma das empresas a enfrentar problemas de stock, à conta do cenário dantesco nos portos. O efeito já se sente nas lojas e a retalhista sueca estima que a escassez de artigos e os atrasos se prolonguem até ao verão de 2022. A expectativa foi partilhada por Abrahamsson Ring, CEO da Ikea, ao Financial Times. “Na verdade, prevemos que o desafio da disponibilidade e das matérias-primas continue durante a maior parte, se não todo, [o exercício financeiro até ao final de agosto]. É um período mais longo do que pensávamos no início da crise.”
O desequilíbrio entre a oferta e a procura
Depois de um desaceleramento ditado pela pandemia, em 2020, a procura de bens começa a reerguer-se, com a recuperação das economias. À porta de uma das épocas de maior consumo, as necessidades aumentam com a procura das prendas de Natal. O problema é que ainda há fábricas no continente asiático a sofrer as consequências da pandemia e a produzir com limitações. Com uma enorme depedência das rotas orientais, o ocidente vê-se em apuros. A mercadoria é pouca e demora chegar e, por outro lado, a procura não para de crescer.
As unidades de produção da Nike, no Vietname e na Indonésia, responsáveis pela fabricação da maioria do calçado da marca, chegaram a estar paradas dez semanas, este ano e, na China, o cenário não é mais animador. Há fábricas com a produção em suspenso para cumprir as metas de emissões de dióxido de carbono impostas pelo governo e outras estão paradas, sem carvão para conseguir produzir energia. O setor dos carros elétricos é um dos que está a ser impactado: o magnésio, componente das baterias, está em falta devido a este problema.
A crise dos semicondutores e o impacto na tecnologia e nos automóveis
Os semicondutores também têm dado que falar pelos piores motivos. Estes microchips são responsáveis pela condução de correntes elétricas e indispensáveis para a indústria automóvel e das tecnologias. Estão em escassez e, sem eles, não é possível produzir carros, smartphones, computadores e outros gadgets.
Durante 2020, a procura de tecnologia aumentou exponencialmente e os semicondutores deram-lhe resposta. A pressão na cadeia foi aumentando, o problema do transporte serviu de cereja no topo do bolo e, agora, não há oferta que dê folga ao mercado. Além disso, a maioria dos chips são feitos na Ásia, entre a China, a Coreia do Sul e Taiwan.
A produção de aparelhos eletrónicos tornou-se, então, insustentável e há várias marcas a sofrer com isso. No final do primeiro semestre, as vendas de portáteis HP já tinham tombado 11,3% graças às limitações da oferta. Também a empresa Microsoft estava a sair prejudicada: as vendas do computador Surface desceram 20% entre abril e junho e a receita de licenças Windows diminuiu, com a oferta de computadores afetada. Além disso, as entregas destes aparelhos estavam com atrasos de até cinco meses.
A Sony tem vindo a lançar quantidades muito limitadas da consola Playstation 5, no mercado há quase um ano e com listas de espera longas. A Apple segue o mesmo caminho e já afirmou que vai produzir menos dez milhões unidades do IPhone 13, face ao inicialmente previsto. Em Portugal, a fábrica da Bosch já foi obrigada a suspender a produção.
No setor automóvel, a situação é semelhante. Na Autoeuropa, a falta de semicondutores significou, até agora, menos 49 dias de produção. Segundo dados divulgados pela Associação Automóvel de Portugal (ACAP), a produção nacional de veículos automóveis caiu 34,7% em Setembro, face ao mês homólogo de 2020. Foram cerca de 21.000 os carros produzidos em território nacional, devido à escassez de chips. Tudo isto se tem notado na oferta disponível, com entregas em atraso e stands só com carros de exposição para venda.
A escalada de preços dos bens essenciais
Desde 2020 que os preços das matérias-primas têm vindo a aumentar. A instabilidade provocada pela pandemia e o aumento dos custos com transportes, devido ao avanço dos preços do petróleo, são dois dos motivos apontados, mas o clima não tem ajudado e os fenómenos naturais estão a causar escassez.
O valor da soja e dos grãos de café duplicou e o papel, o cartão e o plástico das embalagens também estão em movimento ascendente. O preço do milho já disparou mais de 40%, desde o início do ano e, em junho, o trigo mole, essencial para a indústria panificadora, estava 30% acima do valor de 2019. Num país em que a produção de cereais satisfaz menos de 10% do consumo, se as importações encarecem, o produto final, também.
Com toda a cadeia produtiva afetada, não é de estranhar que a subida de preços de produtos afete várias áreas. Frutas e legumes deverão ficar mais caros. O leite, a carne e os ovos sofrem com o aumento do preço de rações, produzidas à base de cereais, e também devem ver os preços a subir. Nem o bacalhau escapa à escalada e o preço já aumentou 15% no último trimestre.
Também nos últimos meses, a Unilever, detentora de marcas como a Dove, a Cif e a Lipton, aumentou os preços, em mais de 4%. De acordo com a agência noticiosa Bloomberg, a empresa assumiu que a subida vai manter-se em 2022. Marcas como a Nestlé e a Danone seguem o mesmo rumo.