A Evergrande tem estado no centro das atenções nos últimos dias devido ao risco de colapso. Trata-se de uma das maiores construtoras chinesas e das 500 maiores empresas do mundo (no ranking Fortune Global 500), que conta com uma dívida superior ao PIB (Produto Interno Produto) português. Das várias unidades que estão sob a sua alçada, é uma das principais que está a enfrentar sérios problemas financeiros — a imobiliária Hengda Real Estate Group.
A história do grupo Evergrande
Fundado em 1996 pelo empresário chinês Xu Jiayin, a Evergrande cresceu com o boom da construção na China e chegou a ter mais de 800 projetos imobiliários, espalhados por 233 cidades, em mão. Destes 500 já estão parados. Dada a dimensão dos seus negócios, há muitos governos locais envolvidos em parcerias e apoios.
Além da Hengda Real Estate, há outras empresas importantes neste conglomerado que mais parece ser um império sem fim. A New Energy Auto dedica-se ao fabrico de carros elétricos e detém o total das ações da sueca NEVS, dona da SAAB. A Property Services é responsável pela gestão de grandes parcelas de imobiliário e a HengTen Networks está ligada às tecnologias digitais — é a dona da plataforma de streaming de vídeo Pumpkin Film e da maior produtora de cinema e televisão chinesa, a Ruyi Films.
A estas somam-se a Evergrande Fairlyland, construtora e promotora de parques temáticos e atrações turísticas; a Evergrande Health, que providencia serviços e cuidados de saúde a seniores e está envolvida na construção de hospitais e de parques de lazer e a Evergrande Spring, focada na venda de produtos alimentares saudáveis.
No total, o grupo sustenta mais de três milhões de postos de trabalho e gere ativos na ordem dos 330 mil milhões de euros.
O endividamento excessivo e a queda anunciada
A situação de prosperidade desmedida da Evergrande inverteu-se quando foram impostas regras para travar a especulação imobiliária e o endividamento excessivo em Pequim. Filipe Garcia, economista da IMF (Informação de Mercados Financeiros) explicou ao MoneyLab que “o mercado imobiliário chinês é descrito como estando numa espiral especulativa e o governo já avisou que ‘as casas são para morar e não para especular’. Os preços têm caído, a regulamentação está a mudar e os receios de que o setor possa colapsar e contagiar outros setores são evidentes.”
A Evergrande já se encontrava dependente de empréstimos, mas foi em setembro de 2021 que deixou de pagar os juros, depois de um ano em que perdeu muito do seu valor em bolsa. A empresa viu-se obrigada a vender imóveis à pressa para conseguir saldar as dívidas e terá até chegado a pressionar os empregados para investirem na empresa.
Pedro Lino, CEO da Optimize e da Dif Broker, economista e analista de mercados, salienta a área de negócio em que a Evergrande está envolvida para justificar a dívida superior a 300 mil milhões de dólares. “O imobiliário representa 40% da riqueza da população chinesa. Na última década houve um grande crescimento da riqueza na China e grande parte foi canalizada para o imobiliário. O incentivo partiu do governo, com a construção de cidades fantasma, sem habitantes. Com restrições na transferência de dinheiro, os chineses optaram por comprar casas, mantendo o preço do imobiliário artificialmente alto.” O que a Evergrande fez foi apanhar a boleia da especulação para se tornar na segunda maior promotora imobiliária chinesa.
Para Filipe Garcia, “o endividamento foi crescendo porque foi permitido e porque a oportunidade de mercado estava lá: os preços estavam a subir e havia procura. A situação degradou-se devido a dois aspetos que acabam por estar relacionados. Em 2020, o governo chinês alterou a regulação, obrigando as empresas a desalavancar e os preços começaram a cair. O fluxo de caixa da empresa começou a deteriorar-se e à medida que isso foi sendo conhecido pelo mercado, as dificuldades, naturalmente, escalaram.”
Será a Evergrande um novo Lehman Brothers?
A associação direta ao caso da empresa que levou à crise financeira de 2008, tem sido frequente. É uma associação fácil e pode ser assustadora, mas os dois analistas duvidam que o caso seja semelhante. “A Lehman era um banco com poucos ativos tangíveis, menos vasos comunicantes para muitos setores e países e com um papel central no sistema financeiro mundial. A Evergrande é uma construtora com ativos tangíveis. Grande parte dos ativos e passivos está na China. Há riscos para o sistema financeiro chinês, mas há ferramentas para conter os danos e a crise”, afirma Filipe Garcia. “A maior preocupação pode surgir de três pontos: o setor imobiliário chinês pode implodir e afetar outras empresas e setores conexos; parte importante do crescimento da economia chinesa tem vindo do imobiliário e uma desaceleração da China terá efeitos globais, dado que tem sido ela um dos principais motores da economia mundial, senão mesmo o principal. Por último, os investidores mundiais podem assustar-se com o caso e com a crescente pressão regulatória e intervencionismo estatal. Podem vender ativos chineses e high-yield, o que pode forçar um contágio a outras geografias emergentes e de grau de risco mais elevado. Pode ser o início de um repricing de algumas classes de ativos”, continua. Na sua opinião, “eventos como o de 2008 chegam sem avisar” e seria muito surpreendente se, com toda a atenção que está a ser dada a este caso, o deixassem escalar.
Pedro Lino fala-nos em números concretos, para espantar o medo do fantasma da Lehman Brothers. “Apesar de a Evergrande dever 300 mil milhões de dólares americanos, tem ativos avaliados em 330 mil milhões de euros. A dívida representa 2% do PIB chinês. Mesmo que venda os ativos a 50% de desconto, a perda bate nos 150 mil milhões, sem grande impacto no mundo de triliões de hoje. Além disso, os bancos centrais estão mais ativos e tentarão evitar qualquer contágio ou incerteza na recuperação da economia.”
O medo dos investidores
Os dois especialistas estão de acordo no que toca às preocupações dos investidores, concluindo que aqueles que têm dívidas ou ações da Evergrande deverão estar preocupados. “As ações já baixaram mais de 95% desde o seu máximo”, diz Pedro Lino. Filipe Garcia completa, afirmando que haverá muitos investidores de retalho com ações e obrigações do Evergrande a temer pelo seu dinheiro. Destaca a possibilidade de os preços do imobiliário serem “pressionados em baixa, provocando instabilidade social na base de investidores, algo que o governo poderá querer evitar” e não afasta a possibilidade de uma reestruturação da dívida, bem como da própria empresa, que poderá “ser partida em pedaços.”
O risco real de desinvestimento estrangeiro
Um dos maiores riscos da situação é o do desinvestimento dos investidores estrangeiros institucionais no mercado chinês. Filipe Garcia explica que se trata de “um mercado opaco, com alguma dificuldade de acesso e um intervencionismo crescente”, que funciona quase como um paradoxo. Se, por um lado, a maioria dos analistas considera que o futuro é da China e que as melhores oportunidades de crescimento, desenvolvimento e investimento estão lá, por outro, há um certo desconforto em investir. “Perante um caso como este, o desconforto vem mais ao de cima. É também por isso que me parece que a China tentará amenizar os efeitos desta crise.”
Pedro Lino, por outro lado, diz que “é natural que os investidores institucionais se retraiam na exposição à China”, pois é necessário compreender se existe um evento de default e qual será a solução. “Só depois da resolução deste problema e da política da China em relação aos grandes conglomerados é que poderemos assistir a uma retoma da cotação de algumas empresas chinesas.”